sexta-feira, agosto 29, 2008

Vai tua vida

'que o sal dos olhos veio da carne conferida embaixo da unha minha: a última sessão de quinta, o vento alertando os braços da intencionalidade vaga, a pipoca de antes, o sal no gume de cada dedo, os cílios me culpando o descuido da água que a mão não teve: a cha, a chu, o cho. chamada a chuva, o choro! (amada a vulva, o gozo!)

quarta-feira, agosto 27, 2008

O labirinto

''Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.''
O labirinto in Atlas - Jorge Luis Borges

sexta-feira, agosto 22, 2008

quinta-feira, agosto 21, 2008

Derrame verbal

Simulando dois navios naufragados, os tapetes de pele envoltos aos meus olhos derramados. Eu devia estar me sentindo tão calcanhar despido em gelo e escamas que imaginei a tua fraqueza conduzindo os meus impulsos derretidos somente por não caberem. E te vi sentado numa calmaria que nunca tua, assistindo o filme dos papéis que engravidam vozes de mim. Tu me secavas a vida que me estampava o choro na escuridão desejada do cinema. A vida que é o meu sintoma cognitivo maior. Os muitos cavalos galopando o meu pouco espaço. Eu estava prestes a explodir quando te criei tão real ao alcance de minha alucinação amiga. É que eu me proibia de amar em desatino as montanhas invertidas. Dava-me ordens como não me despir nem em banhos diários. Avesso de mim servindo de proteção aos tecidos. O que era mim-eu-dentro-alma-âmago-me-sangue deu de facas à intimidade sabida anônima. E tu tens a mim como sendo invenção nunca existida. Então te inventei para que me inventasse, para que despisse o avesso e depois as minhas vestimentas, para que a minha estrada mais funda pertencesse a tua cabeça libidinal mais instintiva, para que, junto a mim, tu te tornasse também navio naufragado; embora um navio naufragado em gozo possível de montanhas invertidas.

terça-feira, agosto 19, 2008

Animus & Anima

E então, apresentando a ela o dorso vestido de tecido negro e casca ferida, Animus virou tenro a cabeça de modo a encostar o queixo no ombro direito, contornando o perfil cabisbaixo entre azulejos nodosos ao fundo. A pupila sendo a coitada com os dedos do sol lhe esticando a íris. Animus enrugava os sobrolhos, afirmava os olhos tentando a fotografia da última cena que pudesse, vontade dele, figurar qualquer lembrança anterior ao corpo curvado. Animus implorava um adeus não correspondido. A vida maltrapilha pede piedade à dor. Era certo que eram as solas dos seus pés que pisariam a terra em busca de distância daquela ruína, mas a covardia lhe cabia tão bem. Sentia-se confortável em esquina perdida - mergulhado no dia a dia que se repetia a cada resto de lama que já endurecera no pano da roupa.
Anima ensaiava um desprezo agarrando uma perna a outra, caindo o pescoço em borda oleosa da banheira, acarinhando com as próprias mãos os seios. Por cima do corpo, via Animus estender até ela a aflição pusilânime de querer lembrar somente do esquecimento. A aflição pisulânime. Afundou-se, de súbito, na salmoura. Fechou braços e pernas em posição fetal e a cabeça tentando o abismo do umbigo para que a banheira lhe servisse e a salmoura evitasse a decomposição do consciente. Anima estava percorrendo a visão mórbida de uma porta esmagando a metade da face de Animus, saltando-lhe o olho direito e respingando líquido pardo em azulejos com manchas de caminhos. Com manchas de caminhos, com manchas de caminhos, com manchas de (!)
O caminho queria o tombo dessas almas outorgadas ao repúdio de si mesmas. É inocente inclusive o pulsar do peito que desconhece a inércia. O caminho. O tombo queria a fúria dos dentes libertos das gengivas sem saúde para mastigar. Os não-amados também têm fome. O caminho. O tombo. A fúria queria a tristeza corrompida aliada ao prazer. É possível uma corja infiltrada num âmago. O caminho. O tombo. A fúria. A tristeza queria Cleópatras e cobras. Algumas realidades preferem as pálpebras alongadas. Cleópatras e cobras queriam o perdão nascendo no útero. De nada adianta costurar línguas ou dicionários, todas as coisas existem. Cleópatras, cobras, a tristeza, a fúria, o tombo,
O caminho com manchas. Animus guerreava com o seu corpo que há tanto estava entregue a uma câimbra generalizada. Era como uma tentativa de fuga para o sem-nome que latejava dentro do que fora nem sujeira nem rachadura ou casca e ferida de assemelhava. Alma? Não. O Sem-nome. Seus olhos esbugalhados eram graça para o sol que inflamava, que fazia rebuliço com dedos de fogo. A aflição pusilânime. Nervos ganhando delineações externas que outrora aconteciam soterrados dentro da casca grossa do pescoço. Animus gritava a loucura! Animus era a costela do sem-nome! Animus aguçava o sangue para este atiçar os músculos tão rendidos à vida. Um tirano que segurava um espeto de ferro com brasa no gume. Um tirano que tatuava no próprio sangue uma fenda rubra. A melodia das faíscas e Animus sendo outra mancha no chão. A mancha embalsamada de choro odiando o sal da água que escondia Anima.
A salmoura aos poucos embaçava de Anima a visão. Animus estranhava a religião de ter aonde chegar. Anima, mesmo sem olhos que prestassem, continuava a enxergar a metade sendo inteira destruída. O tirano de boa fé lutava pelo fim do caminho. Anima reconhecia na amargura do sal o seu desprezo que significava a maior nudez, a sua nudez doce.
Animus puxou pelos cabelos ralos Anima das águas, devolvendo a ela o sol rebelde. Anima consentiu o afago e protegeu os seus seios no tecido negro - que doce igual - de Animus.
E então souberam: fizemos amor.

sexta-feira, agosto 15, 2008

Uma temporada no inferno

''Escuto-o a fazer da infâmia uma glória, da crueldade um atrativo. 'Pertenço à raça distante: meus pais eram escandinavos: faziam incisões nas costas, bebiam o sangue. - Farei entalhes por todo o corpo, me tatuarei, quero me tornar assustador como um mongol: vais ver, berrarei pelas ruas. Quero me tornar louco de raiva. Nunca me mostre jóias, vou me arrastar e retorcer no tapete. Minha riqueza, gostaria de manchá-la de sangue por toda parte. Nunca trabalharei...' Muitas noites, seu demônio me tomando, rolamos juntos, lutava com ele! Seguido ele me aguarda à noite, bêbado, numa rua ou sob um teto, para me amedrontar mortalmente. - 'Vão me cortar o pescoço mesmo, que nojo'. Oh, os dias em que quer andar com a aura do crime!
Às vezes fala, numa espécie de gíria enternecida, da morte que faz se arrepender, dos infelizes que sem dúvida existem, dos trabalhos penosos, das separações que dilaceram os corações. Nas espeluncas onde nos embriagamos, chorava observando os que estavam em volta, gado de miséria. Levantava os bêbados nas ruas escuras. Tinha a piedade de uma mãe malvada pelos filhinhos. - Ia embora com gentilezas de menina aprendendo o catecismo. - Fingia estar a par de tudo, comércio, arte, medicina. - Eu o seguia, era preciso.
Eu via todo o ambiente no qual, em espírito, se envolvia: roupas, lençóis, móveis: eu lhe dava força, uma outra figura. Via de tudo o que tocava, como se tivesse querido criar cada coisa por ele mesmo. Quando me parecia com o espírito inerte, eu o seguia em ações estranhas e complicadas, longe, boas ou más: estava segura de nunca entrar em seu mundo. Ao lado de seu querido corpo adormecido, quantas horas noturnas de vigília, me perguntando por que ele queria tanto se evadir da realidade.
(...) Como isso te soará engraçado quando eu não estiver aqui, isso por que passaste. Quando não tiveres mais meus braços em volta do pescoço, nem meu peito para nele descansares, nem minha boca fechando-te os olhos. Porque é preciso que eu vá embora, para longe, um dia.''
Página 53, Delírios in Uma temporada no inferno, Arthur Rimbaud.

And if it's Happiness?

So closer, too far away

E na poltrona ao meu lado, numa sessão cinéfila italiana, um velho ronca e se esquece.

quarta-feira, agosto 13, 2008

De '89 a '08

Há como se camuflar ensimesmado numa explosão de eus dançantes e drogados de espírito selvagem?

terça-feira, agosto 12, 2008

Sexta-feira da Paixão

''(...)
Chego meio prosa, sombras no rosto.
Não tenho muitas palavras como pensei.
"Coisa ínfima, quero ficar perto de ti".
Te levo para a avenida Atlântica beber de tarde
e digo: está lindo, mas não sei ser engraçada.
"A crueldade é seu diadema..."
O meu embaraço te deseja, quem não vê?
Consolatriz cheia de vontades.
Caixa de areia com estrelas de papel.
Balanço, muito devagar.
Olhos desencontrados: e se eu te disser, te adoro,
e te raptar não sei como dessa aflição de março,
bem que aproveitando maus bocados para sair do
esconderijo num relance?
Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?
Beware: esta compaixão é
é paixão.''
Página 70, A teus pés - Ana Cristina Cesar

segunda-feira, agosto 11, 2008

Philo & Sophia

Eu escuto mais no oco ocre. Oco moldado, como se por argila, em paredes tão robustas e pesadas que é irrealizável a locomoção da estrutura que se forma: monumento de dimensão imersível embutido em alguma realidade pequena. O oco é imersível pois é o tudo não-preenchido; é o silêncio povoado que habita. No oco ocre, um estalo singelo de osso, por exemplo, se parece com um alerta. Um alerta para lembrar que o eco do osso esticando no oco ocre é cacofania ao avesso: a repetição do estalo passa a ser o monumento embutido. As paredes dessa estrutura são como águas congeladas em inverno eterno, e meu corpo é fundado no oco ocre tal qual parte inerente da matéria-coisa vazia. Uma palavra pronunciada ou grito estendido ou tosse resvalada ou estouro dado do lado de fora da estrutura moldada é o que aquece a superfície intacta e, na travessia de ambiente, faz-se barulho derretido em gotas.
Ou seja, no meu silêncio despovoado, eu sou o estado gasoso saturando o antes da camada sólida, que se deixa beber o líquido para que haja a companhia. A esse emaranhado físico dou o nome de desconcentração voluntária. Quando se é parte do silêncio, não existe atenção no que rege o pensamento de reconhecer o que se era, pois, o formato e a textura do corpo foram esquecidos e pouco importam as mãos se o tato já está fragmentado em oco ocre. O pensamento é uma palavra ou grito ou tosse ou estouro engolido. A sensação é de um formigamento eufórico porque é como transcender o poder de ser e ainda estar acompanhado de um raciocínio, mesmo este provocado por uma concentração fugida à gênese própria.
À surdina do real, a sensação menos importante é a perplexidade humana. À medida que se enlouquece a sensação hebraica, tão antiga, de mergulhar no silêncio e descobrir-se ainda respirando, as espadas ajuizadas fincam o pensamento numa vertigem subjetiva como se elas fossem pregos em madeira seca. Um acumulado de idéias surge à mente e o mundo parece imortal: não existe a pressa de definição de alma e de entendimento ontológico. Eu escuto a vida sem a necessidade de estar viva, eis a força do oco ocre.
O surreal só terá desfecho quando houver um estrondo. Um estrondo que quebrará o gelo das paredes e que me levará ao engasgo. Aos soluços serei obrigada a buscar o insólito da realidade existida. Isso exigirá uma atenção para distinguir se, depois do tempo corrido, eu ainda vivo ou se já morri.
O novo silêncio - o silêncio despovoado que não habita, mas que deixa um vazio descarnado - será de descoberta. Cairei na desconcentração involuntária: a palavra falando, o grito se desesperando, a tosse asfixiando, a bomba explodindo e meu pensamento, ao invés de ser fisgado por esses acontecimentos, fisgará a idéia em mim e tudo será eu: eu falando, eu me desesperando, eu me asfixiando, eu explodindo:
Há a carência de sentido humano. Será preciso caber a alma em mim para que eu me sirva em alguma realidade, ora a que me faça continuar inflando a insanidade e suspirando o inverso, ora a que me engolfará a pulsação cardíaca e me tornará a fantasma de meus anseios, provocando o meu desespero vivo de querer a morte na vida oculta. A atenção absoluta em mim será a concentração involuntária e a deslealdade dos meus monólogos entorpecerá a minha mente, que já esquizofrênica.
Na mania de não suportar a ingratidão do tempo, sonharei a concentração voluntária com a esperança de dormir soterrada em alguma nostalgia vital, que será tão real quanto viver estando viva.

sexta-feira, agosto 08, 2008

O calendário dos velórios

Quedou os próprios pés
No ácido líquido de lágrimas
Saídas de seios em galé
De mulheres grisalhas
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Ritmo kitsh de uma velhice
Nascida de um acúmulo oco
Ganhado no troco do que, tu viste
Belzebu deu pouco, um amanhã e teu olho

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Para injuriar colméias assassinas
Da esperança transfigurada na esquina
Da ordem mesquinha: vida e morte, morta-viva
Dos anônimos que lhe amputaram a sisudez das pernas

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Enchiam a bacia que tu guardaste os dedos polimorfos
O leite materno de berço
Das grisalhas rezando o teu começo
Num velório em vinho; o teu antigo remorso

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De transtornos bêbados na incoerência
A dama violenta te encanta na dança
Que louva teu rancor pávido
Rebolo o osso, te arrepia o dorso pecaminoso

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Te pendura as patas, Felino
No cenho de um escaravelho
Te cospe o excremento no teu caminhar coxo
Te ri o eu ao espernear o teu hino, Felino, de adeus

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(Na missa sem Deus
Na armadilha do fim teu
Tumba tua, de Julieta e de Romeu)

quinta-feira, agosto 07, 2008

Quero ser Deus, Quero ser Hannah

A existência humana ainda era acometida à Hannah sem nenhuma reflexão racional, quase como um sobressalto se não fosse o triunfo de se ver plantada esguia na mesa alta de cimento. Era certo que os pés ficavam na meia-ponta para que as mãos tivessem o que agarrar, mas já entendia que o seu pouco tamanho era desregrado e que isso lhe fora imposto para que pudesse avançar por dois espaços: a coragem de Hannah a duplicava. Se alguma filosofia lhe fosse impossível enquanto infante ou dócil, não teria sentido de antemão que esse fardo lhe acompanharia até o fim. Supressão aniquilada aos cinco anos de idade: as gotas da chuva são os raios solares, concluiu.
Os olhos estavam apontados para a altura da mesa – para o mundo que zombava de seus confins -, as mãos suavam as certezas vis de talvez, quando enraizada em altura inalcançável, ter acesso à planilha mundana, os lábios umedecidos pela língua não diziam os segredos que lhe prendiam à vontade de caminhar sob o dogmatismo comunal do cimento alto e não desmontavam o silêncio que dentro das letras amontoadas repetia quero ser Deus. Quero ser Deus quando fragmentado significava Quero ser Hannah e só não era escandalizado em detalhes pois para ser universal Hannah compreendia que as suas particularidades precisariam estruturar a religião daqueles que se bastavam ajoelhados ao pé da cama.
O pouco tamanho de Hannah estava sendo equilibrado pelas unhas dos pés que aos poucos fincavam a cutícula e, depois, ao passo que as articulações dos dedos das mãos mantinham-se esticadas por estarem possuindo a base da mesa, as unhas perfuravam a carne que é a conservação do movimento ou não dos membros inferiores – a planta dos pés. Enquanto as mãos cobiçavam o tato maduro de enfim poder segurar o cimento da mesa, Hannah dilatou a sua presença com a coragem lhe carregando o peso pelos tornozelos. Ela bradava empurre, empurre com certezas lhe pingando a face. Com certezas fajutas: esquecera que havia avançado duas intimidades de si mesma ao ser liberta em leveza. Por prever que Hannah se enraizaria ao cimento da mesa sem coragem de ser Deus, a coragem de Hannah a traiu puxando-lhe as pernas.
As mãos escorregavam da base da mesa como o corpo que foi perdendo o equilíbrio até espalhar-se no chão. De vereda, o queixo de Hannah foi aberto em corte profundo pelo impacto da queda. Os seus cinco anos de vida foram lembrados quando, notando que estava sendo acomodada em colo materno e seguro de qualquer liberdade, pensou que o sangue é a continuação da dor como as gotas de chuva são os raios solares. A mão que lhe acarinhava o rosto infantil e que estava ensangüentada de seu sangue era a de sua mãe. E a expressão facial da mãe de Hannah foi contorcida por sentir tanta estranheza ao ver as entranhas retorcidas que envolviam a mandíbula. Foi como se a razão do ser humano fosse descoberta fora de laboratório científico.
Hannah agarrava com os olhos, entre as mãos enluvadas que lhe costuravam o queixo, o amor de sua mãe. Se não doesse o silêncio que ainda repetia quero ser Deus e se não doesse a ferida que lhe impedia a voz, ela teria dito eu te amo, mãe cerrando os olhos. Hannah – que nunca fora dócil – entendeu que a sua coragem infantil fora costurada junto ao corte do queixo e que seria necessário ter uma força nua de puerilidade para clamar o amor suave, o amor materno.
O esforço maior fora o de revelar o Deus de Hannah – o de ser o cosmo do nome despido de repetições: de ser a Ana da analgesia que a renasceu sem inocência, de ser a Ana sufixal que a caracterizou humana. Eu sou amor suave, gritou.

quarta-feira, agosto 06, 2008

Cem anos de solidão

'' -- Que ninguém tenha ilusões - gritou, para que a ouvisse Fernanda. - Amaranta Buendía se vai deste mundo como veio.
Não voltou a se levantar. Recostada em almofadões, como se na verdade estivesse doente, teceu as suas longas tranças e enrolou-as sobre as orelhas, exatamente como a morte lhe dissera que deveria estar no ataúde. Em seguida perdiu a Úrsula um espelho e pela primeira vez em mais de quarenta anos viu o seu rosto devastado pela idade e pelo martírio e se surpreendeu do quanto se parecia à imagem mental que tinha de si mesma. Úrsula compreendeu pelo silêncio da alcova que tinha começado a escurecer.
(...) A sua lucidez, a habilidade para se bastar a si mesma, faziam pensar que estava naturalmente vencida pelo peso dos cem anos mas, embora fosse evidente que andava mal da vista, ninguém suspeitou que estivesse completamente cega. Dispunha então de tanto tempo e de tanto silêncio interior para vigiar a vida da casa que foi ela a primeira a perceber a calada angústia (...).''
Página 250 e 251, Cem anos de solidão - Gabriel García Márquez.

terça-feira, agosto 05, 2008

Uma lira desvirgem (deflorar: de flor em ar)

por favor,

enfia folhas plácidas

amarradas por cadarços,

ou que via de regra sejam

escritas com sangue e pena

e tenha pena, por favor

ou não há acordo com a minha paz

nem com o terno do termo abreviado

que senta e muito faz na procura pelas pernas

para serem cruzadas

(é medo dos olhos que comem os olhos)

(ou das mãos que tateiam os teus dedos e vagina)

o sino na crista da amargura alucinada - que sina

disfarçar é a minha dignidade – que nada

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minha,

saio berrando o que não tenho na goela

tua,

cela cancela o ela e fica mim, eu, sentido

o susto afunda umbigos

morra comigo?

se respeitares este pedido,

a tua rima será deflorada

a raiz extirpada

e os teus papéis rabiscados

boicotados, atirados lado a lado

obrigados a queima do meu trago

saído

fundido

indo

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buscar a tua pureza no quadro branco

que é silêncio

(este que forjo com a corja das sílabas-marias

que de virgem só carregam o oco da solitude

numa euforia ranzinza)

Me ama, me cama, me vinho

Submergir teus carinhos opacos
Permanecer-te amor me cabendo
à tua carne iníqua
O meu cortiço intercutâneo
a poesia parnasiana da tua estrutura
O meu devaneio na tua rosa
o herói da minha pólis sobrevivente
Uma guerra fria no inferno da obsessão;
Ah! Me ama, me cama, me vinho carbenet sauvignon!

segunda-feira, agosto 04, 2008

Lavoura Arcaica

''(...), e dizer tudo isso num acesso verbal, espasmódico, obsessivo, virando a mesa dos sermões num revertério, destruindo travas, ferrolhos e amarras, tirando não obstante o nível, atento ao prumo, erguendo um outro equilíbrio, e pondo força, subindo sempre em altura, retesando sobretudo meus músculos clandestinos, redescobrindo sem demora em mim todo o animal, cascos, mandíbulas e esporas, deixando que um sebo oleoso cobrisse minha escultura enquanto eu cavalgasse fazendo minhas crinas voarem como se fossem plumas, amassando com minhas patas sagitárias o ventre mole deste mundo, consumindo neste pasto um grão de trigo e uma gorda fatia de cólera embebida em vinho, eu, o epilético, o possuído, o tomado, eu, o faminto, arrolando na minha fala convulsa a alma de uma chama, um pano de verônica e o espirro de tanta lama, misturando no caldo deste fluxo o nome salgado, o nome pervertido do Amor, retirando da fímbria das palavras ternas o sumo do meu punhal, me exaltando de carne estremecida na volúpia urgente de uma confissão (que tremores, quantos sóis, que estertores!) até que meu corpo lasso num momento tombasse docemente de exaustão.''
Página 111, Lavoura Arcaica - Raduan Nassar

domingo, agosto 03, 2008

O Dibuk

O Dibuk é uma obra teatral de Sch. An-Ski. Uma peça que aborda um drama de amor, paixão e fatalidade. A trama, constituída por seis atos, tem início e fim dados pelos seguintes versos:
Por que, por que
do cimo das alturas, caiu a alma
no mais profundo dos abismos?
Em si mesma, a queda contém a ressurreição.
O termo Dibuk significa, no hebraico, 'aquele que adere'. No prefácio da segunda edição brasileira da peça de An-Ski, Anatol Rosenfeld escreveu: “Dibuk é o nome da alma errante de um morto. Em certas circunstâncias um dibuk penetra no corpo de um vivo; “encosta-se” nele, como diriam os espíritas. O dibuk, que se manifesta no corpo escolhido com a voz do falecido, constitui-se em grave perigo para o hospedeiro e tem de ser expulso por meio de práticas exorcistas”. Outra definição dada ao termo no glossário contido neste livro é: “Dibuk: juntado, reunido, espírito mau. Nome que designa, no folclore judaico, as almas errantes. Segundo a crença popular, o Dibuk pode penetrar um ser humano, falando através deste com a voz daquele em cujo corpo viverá e tendo consciência de tudo o que o morto sabia.”
E é daí que vem o nome do blog.

Fúria Narcísica

Tu cada vez mais te manifestas como existência real; perdes a condição de servir a mim como projeção aos meus impulsos e às minhas fantasias. O que era distorcido sem a tolerância de escrúpulo outrora, agora é percepção aguda e nua. Teu gesto calculado reina a tua própria submissão. Por que não te engoles junto à última folha do trevo teu? Por que não sacias essa tua fome de si? Pois a decadência da solidão aos domingos não folga o teu ego inflamado. E para existires real, faça-me realeza: esculpa em mim a culpa da tua ausência raciocinada.

sábado, agosto 02, 2008

O retrato do artista quando jovem

''O seu coração tremeu; a sua respiração tornou-se mais apressada; e um espírito selvagem passou por sobre os seus membros como se ele fosse escalar o sol. O seu coração tremia num êxtase de medo e a sua alma estava num vôo. A sua alma estava alando ar acima para lá do mundo, e o corpo, sabia ele, estava purificado por um sopro, libertado da incerteza e se tornara radiante, diluído no elemento mesmo do espírito. Um êxtase deslumbrado de vôo tornava radiantes os seus membros arrebatados pelo vento. (...) A sua garganta ardia com a vontade de gritar, alto, o grito dum falcão ou duma águia pela altura. Gritar, arrebatadoramente, a sua libertação para os ventos. Esse era o chamado de vida para a sua alma! Não a voz grossa e brutal do mundo dos devedores e do desespero; não a voz inumana que o tinha chamado para o serviço incolor do altar. Um instante de selvagem vôo o tinha libertado, e o grito de triunfo que os seus lábios tinham retido retumbou no seu cérebro fendendo-o:'' Página 189, O Retrato do artista quando jovem - James Joyce

sexta-feira, agosto 01, 2008

Cuspe metafísico

Estrangeirismo crônico. É uma falta de se reconhecer. Uma memória que não se traga: é seca em sua extravagância. Há um distanciamento dos cabelos que ainda me adornam e me pesam, um descompasso das horas e do sono aprisionado no martelar da lembrança que é o feto em meu ventre. Um desconhecido habitável nas vísceras, cuja fecundação não se deu por mim. A promiscuidade dos outros que me torno sem vestígio de prazer. Um banhar-se inoportuno que me salva do eu. E com o uso de minhas próprias mãos, sou a enfermeira do espelho para que haja o zelo da solidão. O ato de repetir a tristeza por uma reprovação da vida que é o todo dia embaralhado. Que é o vômito embalsamado no estômago da alma - a goela é frágil e quase de vidro. Transformar em obra convencional aos bêbados de si o que é tinta-sangue e rascunho, como num material ingerido que se coagula em veia externa ao limite do corpo, é de um estorvamento repugnante à minha abulia. Ponho-me inteiramente cega ao contemplar o meu ralo, de modo a garantir que nasça uma imagem límpida de cinzas & caos como inspiração - embora esta uma inédita estrangeira.

A idade da razão

''Mathieu não escutou mais, sentia-se envergonhado diante daquela imagem de dor. Era apenas uma imagem, bem o sabia, mas assim mesmo...´Não sei sofrer, nunca sofro o bastante.` O que havia de mais penoso no sofrimento era que se tratava de um fantasma, a gente passava o tempo a correr atrás dele, imaginava sempre que ia alcançá-lo, que se ia jogar dentro dele e sofrer de verdade rangendo os dentes, mas no momento em que pensava atingi-lo ele escapava, a gente não encontrava mais nada senão um fogo de artifício de palavras e milhares de raciocínios desvairados em minuciosa efervescência. ´Essa tagarelice na minha cabeça, eu daria tudo para conseguir me calar.` Olhou Bóris com inveja. Aliás, naquela fronte obstinada devia haver enormes silêncios. ´Minto`. Sua decadência, suas lamentações eram mentiras, vazio, ele se empurrava para o vazio, à superfície de si mesmo, para fugir à pressão insustentável de seu mundo verdadeiro. Um mundo negro e terrível que fedia a éter.''
Página 233, A idade da razão - Jean-Paul Sartre.

Mialgia dos existires

Roubei duas voltas 360º de pupilas de um cego. Atrofiei as delineações de paisagens obsoletas para me entregar a um abismo sólido - assim me caibo de modo a transfigurar o âmago em nada, um nada fundo.