domingo, maio 31, 2009

Outra Carta ao Absurdo

a manhã de hoje, no sentido da janela e depois cortina para então matizar os lençóis de ressaca da minha cama, foi vermelha. e é tua a culpa da hemorragia. também de Chico, que cantava as saudades e os pedaços quando tuas palavras de confortar vigília antiga brotaram na tela seca do celular. vermelho é cor de perigo e de desejo (e o meu épico amor por precipícios). sei que a regra é o desapego (''São Paulo, transição, antigamente eu era o Tomas escrito e encarnado, feriados & Rio de Janeiro, família, tia, almoços de domingo na Liberdade, liberdade, liberdade, liberdade, a insustentável leveza do ser''), mas acho que começo a fabricar desenhos antropomorfos na fotografia da memória. (fica de aviso e servindo de uma desculpa tua pr'um sumiço qualquer). animais em homens, o instinto tomando forma. entretanto, que fiquem as linhas feito Montrachet, tragadas & (engo)lidas com maestria: eu sei da poesia e inclusive do seu grand finale - sei do jogo bem jogado, Moço dos trinta.
te mordo leve, bem leve,
''Ela saiu da livraria (só agora me dou conta de que era como uma metáfora, ela saindo nada menos do que de uma livraria) e trocamos duas palavras e fomos tomar um copo de pelure d'oignon num café de Sèvres-Babylone (falando de metáforas, eu era porcelana delicada recém-desembarcada, HANDLE WITH CARE, e ela era Babylone, raiz do tempo, coisa anterior, primeval being, terror e delícia dos inícios, romantismo de Atala, mas como um tigre autêntico, esperando por trás da árvore). E, assim, Sèvres foi, com Babylone, tomar um copo de pelure d'oignon, olhamos um para o outro e penso que já começávamos a nos desejar (mas isso foi mais tarde, na rue Réaumur), e sucedeu um diálogo memorável, absolutamente recoberto de mal-entendidos, de desajustes que se solucionavam em vagos silêncios, até que mãos começaram a marcar, era doce acariciar as mãos, olhando um para o outro e sorrindo, acendíamos Gauloises na ponta do cigarro do outro e vice-versa, esfregávamo-nos com os olhos, estávamos tão de acordo com tudo que era até uma vergonha, Paris dançava lá fora, nos esperando, tínhamos acabado de desembarcar, começávamos a viver, tudo estava ali, sem nome e sem história (particularmente para Babylone, e o pobre Sèvres fazia um enorme esforço, fascinado por aquela maneira com que Babylone olhava o gótico sem colocar-lhe etiquetas, com que andava pelas margens do rio sem ver passar os drakens normandos). Quando nos despedimos, éramos como duas crianças que tinham se tornado estrepitosamente amigas numa festa de aniversário e que continuavam olhando uma para a outra enquanto os pais as puxavam pelas mãos, arrastando-as para a rua, e isso é uma dor doce e uma esperança, e sabe-se que um se chama Tony e a outra Lulu, e basta para que o coração seja como uma fruta, e...
Horacio, Horacio.
Merde, alors. Por que não? Falo daquele tempo, da Sèvres-Babylone, não deste balanço elegíaco no qual já sabemos que o jogo foi jogado.''
(Página 490, Capítulo 93 - O jogo da amarelinha, Julio Cortázar.)