quarta-feira, dezembro 31, 2008

Toma os teus ponteiros

Que esse ar que me falta
é o troco dos relógios que invento.
2008, de fato, foi o ano da lama.
Todavia, que venha o vinho,
mais chuva no ninho,
&, por favor, meus corações todos num só umbigo.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Hoje é dia de Clarice, 10 de dezembro de 1920

''Era noite cada vez mais escura e chovia muito. Embora sem vê-lo, reconheceu pela sua respiração pausada que ele dormia. Ficou de olhos abertos no escuro e cada vez mais o escuro se revelava a ela como um denso prazer compacto, quase irreconhecível como prazer, se fosse comparado com o que tivera com Ulisses. Ele estar dormindo ao seu lado deixava-a a um tempo sozinha e integrada. Ela não queria nada senão aquilo mesmo que lhe acontecia: ser uma mulher no escuro ao lado de um homem que dormia.''
(Página 148, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres - Clarice Lispector)

Pneumotórax

''Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
— Respire.
.............................................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.''
(Pneumotórax in Libertinagem - Manoel Bandeira)

terça-feira, dezembro 09, 2008

Birds of Paradise

No substituto de outro instante - nessa de mundo numa festa à fantasia, astronautas reagindo à fotoquímica, corações emergindo em escafandros, almas a ver navios piratas -, quando tua mão resolver-se à minha, a paisagem bordará, apenas, uma risada malévola de um Deus.
Do pó, o que o vento não levou. De mim, o sono repetindo as vinte e quatro horas. De ti, a imbecilidade subindo palanques. De nós, as amarras desatadas.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Conteúdo fônico descomplicado p'ro Benzinho

Bota as roupas p’ra lavar, Neguim, sei que tem xícara com café monco esquecida embaixo da cama, tá ouvindo não que o cinzeiro grita o hino por paz? Ó o lixinho atrás da porta, Benhê! Encontrei o Montilla na tua gaveta de cuecas & samba-canções, amor beldo de beldade atrofiada, olhaí o paletó servindo de tapete p’r’esse vira-lata!
Seo Francisco Raimundo, desde quando eu falo grego p’ra’s paredes dessa casa? Vou arredar o pé diss’aqui se em dois palitos não fizer das tripas coração!
Devolva o sorriso p’ra’s minhas rugas, meu Chico, ’que aí nem penso e a gente já cai p'ro suor, fazendo graça no sofá da sala..!
__________________________________________________
(O que é que teu ouvido de tuberculoso quer? Não sei a quantas anda a lógica do dia seguinte, então toma o silêncio da minha língua.)
  • ata-me, ata-me, ata-me, ata-me, ata-me, ata-me,,,
  • domingo, novembro 30, 2008

    4 horas & estômago: mais um ensaio

    Não farei uso de palavras rebuscadas. Tampouco da prolixidade. Com o propósito de aniquilar as referências, deixei inclusive a minha individualidade ao lado do dicionário, ambos posicionados no leito do meu pouco sono. A cama que, embora os lençóis tenham sido lavados e relevados, registra – ainda - o ar do conhaque vindo da tua boca estúpida, por vezes malcriada. Sei que a culpa da tua mediocridade não veio do útero de quem te suporta, quiçá a tua existência fora de fato um mau agouro para o mundo. Não farei insinuações pouco confiáveis; as metáforas se cansaram de mim. Desamarrarei os cadarços de olhos fechados, sem risco de me prosar um fenômeno instintivo. Pendurarei o casaco das mangas ¾ na cadeira em frente – tua suposta residência - neste Vanilla Cafee, como se tu tivesses fugido para resolver as tuas vontades fisiológicas ou para fumar cigarros em outro ambiente, sendo que a escolha da mesa nunca deixou de ser na área de fumantes. Ao invés de cervejas belgas ou canadenses, a garçonete trará chá de maçã com canela. Na cena coadjuvante, de foco míope, humanos sentarão famintos ou sedentos, abastecerão os vícios mesquinhos, tornarão a ausentar-se para que outros repitam sucessivamente os entusiasmos supracitados. Manterei as pernas cruzadas e intactas, fazendo pouco caso das dormências musculares, as mãos atadas uma a outra, a face fechada, os cabelos trançados e a nuca nua – que é para sabotar a queima corporal cuja tomada se dá durante o preparo para deixar de te ser. Quando o regime elabora novas leis, não há quem escape de punições. Então inventarei cláusulas que explicarão sofrimentos de outra estirpe. Atirarei os meus corações nas capas sem porquês das revistas, de modo a anoitecer sendo conteúdo de qualquer inédita notícia. Investirei o meu cansaço anulando o meu saldo bancário com fugas para garagens de rock, para botecos cheirando a meretrizes, para quartos de anônimos, para avenidas de mão dupla. É simples elaborar diagnósticos quando se sofre de todas as doenças sentimentais. Falsificarei portfólios artísticos com a finalidade de surpreender os espelhos. Tu foste a diferença universal dos eus que outrora, passado meses a fundo, definiam-se; tu provocaste a minha usual instabilidade emocional. Quem se é de forma exagerada, clama por terras devastadas & frutos proibidos. Devo ter atingido o exílio de mim quando entreguei a minha insônia a ti. É nítida a minha falta do que fazer com as muitas roupas que deixaste espalhadas em minha casa - vestuários que nunca me serviram nem nunca me protegeram do inverno. Os meus lábios rachados comprovam a ansiedade afagada com cigarros & issos & aquilos. Realmente; é desdenhoso todo o esboço que demora a ser arte finalizada. Acontece que toda esta exposição é o máximo do meu pós-modernismo. Comprarei rosas brancas e as distribuirei aos indigentes, serei Maria das Dores, lerei a literatura alemã de cabo a rabo, serei Joana D’Arc, levantarei o dedo às teorias psicológicas, serei Lou Salomé, usarei três colares no lugar de um, serei de Beauvoir, farei as unhas em lua cheia, serei uma virgem, apreciarei vinhos chilenos da safra de antes de Cristo, serei Anaïs Nin, morarei em hotéis impessoais, serei desconhecida, afogarei os diários no Rio Nilo. Por fim, farei uso de outras incansáveis noites, das descabidas manhãs, da vida que segue sem rumo para, talvez, não mais desmentir os primeiros dois períodos que abriram as falsas cortinas deste mais outro ensaio. Não farei uso de palavras rebuscadas. Tampouco da prolixidade. Balela!

    segunda-feira, novembro 17, 2008

    Catatonismo

    Fazem vinte e um cigarros que eu fumo o meu último nesta insônia.
    (Skull with Cigarette - Vincent Van Gogh, 1886)

    sexta-feira, novembro 14, 2008

    O Retrato dos Hojes

    O hábito da maestria dos pés cujo entendimento máximo é o do recuo. O retrocesso que mesmo cega, que mesmo manca, que mesmo nula, que mesmo chuva eu sou capaz de levar a efeito. Da faculdade ao ponto. Cinco a vinte minutos (se por volta das sete, oito da noite, vinte minutos é pouco): o ônibus. O Ana Rosa veio para o desabrochar. Subo a Cardoso de Almeida com a face enfiada no vidro da janela da condução.

    A cada parada, a cada introdução de gente - cada vez mais gente - no veículo, entro mais a cara no vidro e o nariz achatando e o olho direito esmagando e o pavor - preferia o susto - vindo, vindo. Como se o vidro fosse o abraço materno. Um acalento para o temor da impessoalidade que satura o espaço andante. O medo do próprio é o que eles têm. Eu tenho medo da impropriedade em ser deles. Os humanos não mais se olham. Fogem das olheiras do próximo que é para não se perceberem exaustos iguais. Com uma das mãos agarram firme as suas pastas e bolsas ao terno e tailleur; com a que lhes resta, o suporte que evita mais outro desequilíbrio e, então, vivem a solidão lotada - esta outra uma também desequilibrada. Enquanto a minha cara amarrotada.

    Enquanto, estendida a Cardoso até o extremo de sua extensão, o engarrafamento da Dr. Arnaldo lhes comem e torram a paciência e me remete a um desconforto cotidianizado - tanto pela posição, tanto pela falta de caber. E é assim durante a travessia do túnel para a Avenida Paulista. E é assim na Avenida Paulista. E acaba de ser assim quando vou me desamarrotando para descer no ponto em frente ao Conjunto Nacional. Em terra firme ou quase, desejo-lhes coragem para seguir viagem com as suas economias ontológicas exageradas numa espécie de piedade, Senhor. Curo pavores com compaixão, eis uma verdade nada dialética.

    Agora é esperar na calçada uns três minutos para o farol de pedestre me permitir passagem. Vão carros e motos, vão para bem longe de mim! Já do outro lado da Paulista, sigo reto até a Haddock Lobo, passando pelo inferninho tumultuoso da Augusta, desço a Luis Coelho e viro à esquerda da Antônio Carlos. Mais trinta e sete passos largos e o zelador, Seu João, abre a porta principal. Hall de entrada e a porta do apartamento Dois - assim, bem perto, no térreo. O retrocesso costumeiro que me leva a outros mil em matéria de pensamento. O canto inseguro da minha ousadia em ser nua, verborrágica barata e crua de vincos e dobras na face com, sim, olheiras. Mas olheiras de vidro. Vida que não é um abraço materno.

    terça-feira, novembro 11, 2008

    Aconteça

    (Absinthe Drinker, Viktor Oliva) O jornal de domingo continua sendo o de segunda e o de terça. Aconteça!

    Nosso tempo

    _________________________________''(...)II Esse é tempo de divisas, tempo de gente cortada. De mãos viajando sem braços, obscenos gestos avulsos. _________________________________ Mudou-se a rua da infância. E o vestido vermelho vermelho cobre a nudez do amor, ao relento, no vale. _________________________________ Símbolos obscuros se multiplicam. Guerra, verdade, flores? Dos laboratórios platônicos mobilizados vem um sopro que cresta as faces e se dissipa, na praia, as palavras. _________________________________ A escuridão estende-se mas não elimina o sucedâneo da estrela nas mãos. Certas partes de nós como brilham! São unhas, anéis, pérolas, cigarros, lanternas, são partes mais íntimas,e pulsação, o ofego, e o ar da noite é o estritamente necessário para continuar, e continuamos. _________________________________ (...)IV É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. O espião janta conosco. _________________________________ É tempo de cortinas pardas, de céu neutro, política na maçã, no santo, no gozo, amor e desamor, cólera branda, gim com água tônica, olhos pintados, dentes de vidro, grotesca língua torcida. A isso chamamos: balanço. _________________________________ No beco, apenas um muro, sobre ele a polícia. No céu da propaganda aves anunciam a glória. No quarto, irrisão e três colarinhos sujos. _________________________________ (...)'' _________________________________ Nosso tempo in A rosa do povo - Carlos Drummond De Andrade

    quarta-feira, novembro 05, 2008

    A maçã

    De modo furtivo, intervindo violentamente a idealização da minha estréia em plena decadência do ano 08, resolvo a lobotomia paranormal. O complemento na nominação dada à intervenção cirúrgica, estreante aos ouvidos igualmente, deve-se ao fato de não se tratar aqui da cura para a esquizofrenia, os delírios ou mesmo as alucinações. É de caráter antagônico a causa: versa-se sobre o ganho de um banho de realidade desmedida quando se impera a boçalidade em desconhecer o ralo mais próximo. Então, a secção é feita entre o real maciço e a ignorância de executar o fim, isto é, fazer uso do crivo da moral. A paranormalidade entra quando a massa do real se esvai. Afinal, a esperança é justamente a falta de competência para finalizar, sendo esta a fome escandalosa de vida que corrói as entranhas. Perdendo de vista todo o assunto verdadeiro que engolfa, ficarei com a esperança intacta: a peneira não me fará sucumbir à moralidade. Eis a cura. Dormir para acordar e acordar para dormir - e assim sucessivamente - só enquanto o piano não despenca no centro neural. É como ter a maçã e a iminência do pecado. Ser amoral incansavelmente durante todo o processo da existência por ganância à liberdade. E, depois, com tamanha câimbra por suportar o vazio do crivo – feita a lobotomia paranormal já descrita -, aplicar o conto-do-vigário; cuja ação se resume, de maneira exclusiva neste caso, a mergulhar em autenticidade ao contrário de banhar-se de. A partir disso, a estréia. Para ser vigarista há de ser moralista. É exatamente neste momento que a queda do piano acontece. Eis a saga do princípio do prazer & as curas temporárias. Tome esta maçã! Pequemos até o apocalipse!

    segunda-feira, novembro 03, 2008

    Crazy Cock

    ''... de um lado a esperança, longe, para além dos Alpes, e o desespero do outro, do lado de cá, no vale gris e desolado do futuro. E, no entanto, misturada a essa atmosfera de desalento, uma terna espécie de perdão, não explícita, reservada, uma simpatia melancólica como a devotada aos insanos e aos cegos.''
    Página 142, Crazy Cock - Henry Valentine Miller

    terça-feira, outubro 21, 2008

    Trópico de Câncer

    ''Ela, Mona, costumava dizer-me, em seus acessos de exaltação, ''você é um grande ser humano''. E embora me tenha deixado aqui para perecer, embora tenha posto embaixo de meus pés um grande poço uivante de vazio, as palavras que jazem no fundo da minha alma saltam para a frente e iluminam as sombras, por baixo de mim. Sou alguém que se perdeu na multidão, alguém a quem as luzes esfuziantes deixaram estonteado, um zero que viu tudo ao seu redor reduzido a escárnio. Passam por mim homens e mulheres com enxofre, porteiros em libré de cálcio abrindo as fauces do inferno, fama caminhando sobre muletas, amesquinhada pelos arranha-céus, mastigada e esfrangalhada pela boca pontiaguda das máquinas. Eu caminhava entre os altos edifícios em direção ao frescor do rio e via as luzes subirem entre as costelas dos esqueletos como foguetes. Se eu fosse verdadeiramente um grande ser humano, como dizia ela, então qual seria a significação dessa escravizante idiota que me cerca? Eu era um homem com corpo e alma, eu tinha um coração que não estava protegido por cúpula de aço. Eu tinha momentos de êxtase e cantava com centelhas ardentes. Eu cantava o equador, as pernas dela vestidas de vermelho e as ilhas perdendo-se de vista. Mas ninguém ouvia. Um tiro disparado através do Pacífico perde-se no espaço porque a Terra é redonda e os pombos voam de cabeça para baixo. Vi-a olhando através da mesa com os olhos cheios de pesar; a tristeza, aprofundando-se, achatava-lhe o nariz contra a espinha; a medula batida pela piedade tornara-se líquida. Ela era leve como um cadáver que flutua no mar Morto. Seus dedos sangravam com angústia e o sangue transformava-se em baba. Com a madrugada úmida veio o dobrar dos sinos e ao longo das fibras dos meus nervos os sinos tocaram incessantemente e seus badalos bateram em meu coração e retiniram com maldade de ferro. Estranho que os sinos dobrassem assim, mas ainda mais estranho é o corpo estourando, esta mulher voltada para a noite e suas palavras verminosas roendo através do colchão. Movimentei-me por baixo do equador, ouvi a hedionda risada da hiena de fauces verdes, vi o chacal de rabo sedoso e o leopardo malhado, tudo deixado no jardim do Éden. E depois sua tristeza alargou-se como a proa de um couraçado, e o peso de seu afundamento inundou minhas orelhas. Lodo e safiras escorrendo, derramando-me entre os alegres neurônios, e o espectro entrançando e as amuradas afundando. Macios como patas de leão eu ouço os carros dos canhões virarem, vejo-os vomitarem e babarem: o firmamento verga e todas as estrelas ficam pretas. Oceano negro sangrando e as estrelas chocas criando nacos de carne recém-inchada enquando no alto os pássaros esvoaçam e do céu alucinado cai a balança com o almofariz e a mão, e os vendados da justiça. Tudo o que está aqui relacionado move-se com pés imaginários ao longo dos paralelos de orbes mortos; tudo o que é visto com as órbitas vazias rebenta como capim florescente. Do nada esgue-se o sinal de infinito; debaixo das espirais sempre ascendentes afunda-se vagarosamente o buraco escancarado. A terra e a água fazem números em conjunto, um poema escrito com carne e mais forte que o aço ou granito. Através da noite interminável a Terra rodopia em direção a uma criação desconhecida...
    Hoje acordei de um sono pesado com pragas alegres em meus lábios, com palavras desconexas em minha língua, repetindo para mim mesmo uma litania - ''Fay ce que vouldras!... fay ce que vouldras!''. Faça qualquer coisa, mas que cause êxtase. Tantas multidões dentro de minha cabeça quando digo isso para mim mesmo: imagens, alegres, terríveis, enlouquecedoras, o lobo e o bode, a aranha, o caranguejo, a sífilis com suas asas estendidas e a porta do útero sempre destrancada, sempre aberta, sempre preparada como o túmulo. Luxúria, crime, santidade: as vidas dos meus adorados, os fracassos dos meus adorados, as palavras que deixaram atrás de si, as palavras que deixaram inacabadas; o bem que arrastaram atrás de si e o mal, a tristeza, a discórdia, o rancor, a luta que criaram. Mas, acima de tudo, o êxtase!''
    Página 237, 238 e 239, Trópico de Câncer - Henry Valentine Miller

    domingo, outubro 12, 2008

    Na manhã seguinte,

    me comprou dois maços de cigarro & uma água com gás ao invés de um bouquet de rosas brancas & vinho: me apaixonei na reentrância de mim - ainda que os pulmões sejam já fictícios e, exatamente por isso, os suspiros tímidos e inconvincentes. É melhor que se engane, moço de convés, pois a minha boa-fé tem o peso de uma âncora.

    terça-feira, outubro 07, 2008

    Brainstorming

    uma das garrafas de cerveja da última quinta se porta esguia em cima do rack de madeira pálida, na estante deste mesmo móvel o copo seco e fundo que antes amargo até a boca faz o favor de nutrir as poeiras d'A hora dos assassinos - Miller inquilino de Rimbaud - com seus ares fungosos, uma outra garrafa ainda de quinta está posicionada ao lado do lixo, que virado, espalha uns bons seis maços raquíticos de cigarros no chão que é madeira envelhecida, a última garrafa que não foi junto à leva de cervejas amarroadas para a fila da pia da cozinha na tentativa quase planejada de purificar o quarto também de uma ressaca que viria está encostada à cama, com um travesseiro leve leve pluma leve pousa limpando-lhe o gargalo, supostamente caído na noite mal dormida de quinta para sexta, uma outra garrafa, mas de saquê e, bem, essa é de sábado, fica próxima ao meu cotovelo esquerdo enquanto digito e páro, modifico o perfil observando o fim do império do meu quarto tão romântico, decadence avec elegance, procurando na janela a noite que perdi por afagar a inquietude nada produtiva por capricho da insônia, então volto a atenção à tela do note sacando o meu vacilo de não citar a xícara com muito sal que tampa justamente o valor da conta de telefone do mês passado que, poxa, venceu há seis dias, e por falar em ligações, quis tanto te ouvir gaguejar em destrambelho pelo ímpeto pulsional de apertar a tua combinação numérica e balbuciar a poesia que é tua e que já é quase um fóssil no meu sistema límbico pois costumo suspender o objeto libidinal a todo custo no disco imperturbável de pensamentos avulsos, como o de onde é que está o cigarro?, agora preso aos lábios, mas e o isqueiro?, ao lado da rolha do carbenet sauvignon de domingo, cuja compra se deu por acaso porque, juro, eu fui mesmo ao mercado só para comprar milho para a pipoca e para a sessão calos de amor com Natural Born Killers e, enfim, o cigarro chegou no filtro e preciso sim jogar as bitucas, as guimbas, as cinzas fora para que seja apagado com soquinhos delicados de dedos no fundo do cinzeiro, diferentes dos socos que deveriam partir do sono em direção certeira ao meu cansaço de ser tão prolixa às seis da manhã da terça de mais outra semana que me acompanhará a vida-a-vida com mais outras garrafas, que decerto se estacionarão em cantos sábios desse meu ambiente, me fazendo perder a coerência para decorar os sentidos como o de concluir que o copo americano com resto de café também serve de túmulo ao cigarro que, pobre coitado, apagou sozinho entre os dedos,

    Carta ao Absurdo

    O foco estrábico está nos monstros cujos trejeitos tomamos partido: nos monstros que nos tornamos. Monstros estes solitários por segredar a eternidade no fim de si, os anômalos dignos do terror pior que é o de destelhar as casas todas de qualquer cidade construída nos becos e ruas dos nossos sangues.
    É sabido que tu em mim e também o contrário teve liberdade pequena desde o último inverno, em Agosto. Quando trancada a porta da frente, o corredor e suas possibilidades seqüestravam o tempo em que noutra estação fomos um eu. Estruturamos uma mentira desumana onde o desejo só existia na limitação opaca deste apartamento de paredes compridas demais.
    Fora da tinta branca e da infiltração no teto da sala de estar a regra era te pintar de cinza. Fugia os meus olhos para não querer teu cheiro e gozo ou apertava-os fortemente para não ouvir as poesias tuas para a outra, as outras – tanto faz.
    E tanto fez; e tanto nos fizemos somente nos meus lençóis e na falta de tecido da tua cama que encontrei o labirinto excessivo da minha não-identidade em ti, homem do Absurdo.
    Retrocedi às sensações primitivas que nunca se definem antecedentes a e sim a partir de; como se esse amor fosse fisiológico na distância do meu início.
    Colecionamos sustos, medos, cicatrizes, feridas, as palavras minhas e os teus silêncios que me ensurdecem feito gritos de morte, de morte matada.
    É o fantasma da morte nos unindo como o vento e suas impurezas. Tu estancado no teu limite que é a sempre devastação triunfal de um inventário visionário meu. Tua cortina me esconde, ó indomável. Deixa-me ser a noite nua desse teu quarto selvagem de chão e papéis amassados, de chão e cadáveres vivos de amor.
    Porque, em verdade, tão pouco sentido faz essa atmosfera outonal e os teus móveis novos, madeira angelim-pedra com puxador prata. Tampouco a tua porta trancada com violência e a maçaneta caída para eu perceber que algo te dói - agonizada face de textura fina, olhos a salvo pelas sobrancelhas ordenadas e convexas. Ainda pouca realidade tem nas tuas camisetas dobradas como se por mim e organizadas nas gavetas de madeira angelim-pedra com puxadores pratas. Tanto menos real a luz elétrica contornando os vãos da tua porta em pleno dia quente com os humanos de mangas longas e guarda-chuvas.
    A chuva ácida acontece neste apartamento, pobres humanos do lado de fora. Gotas borrando o papel e apagando os cigarros. Gotas derretendo os pilares cardíacos e inclusive os sistemas orgânicos todos, infiltrando o teto da sala de estar sempre mais e aumentando o número de garrafas alcoólicas para servir às goteiras. Para as goteiras, evidente que sim.
    O resto da tua carne moída na panela há semanas sustenta os fungos perfumados, que fazem analogia a um funeral em cozinha. Já essas proteínas ausentes da minha função vital criam seres esvaziados e anêmicos no meu ralo – junto às cinzas de nicotina fumada -: criaturas tão incapazes de seguir viagem à razão. O que houve com a minha melodia? Sou disco riscado em vitrola sem agulha.
    Quiçá o descontrole das notas é a tentativa de um nós em nó. Teu assovio à meia-noite quer me seduzir da tua felicidade esquecida no teu cruzar de pernas em ruelas e somente lembrada ao entrar pelo corredor; tua cantoria em conjunto àquela voz feminina e teu grito ao relento de um Universo em Desencanto me recuam o bom senso. Confundo a intensidade e te amo em desespero sem compreender o que é o quê, o eu sou quem, o quem sou eu, o qual é como, de quais os porquês, o para nunca mais?
    Despeço-me permanecendo na ambivalência dos velhos lençóis ou quase ou nada, fitando os meus pés a flutuar em sensações de tijolos e cimento, neste quarto de paredes compridas demais, neste apartamento de mesmo endereço que o teu: coerência frívola do envelope não encaminhar-se à caixa do correio. O absurdo já jaz tal jazz nefasto aqui, perdido em intenções de projeção a uma natureza que não a nossa, homem do Absurdo: ao silêncio do meu além e do teu aquém.

    segunda-feira, setembro 29, 2008

    Eu tropeço na cortina abrindo que é para o espetáculo logo terminar

    Like a Amy on the kitchen floor, vou beber e fumar feito louca sem destino nos bares junkies da vida, trepar por puro gozo com os desconhecidos mais íntimos e evitar os calos do amor. Dois mil e oito é o ano da lama, even.

    quarta-feira, setembro 17, 2008

    Ensaio sobre a cegueira

    ''O medo voltou, sub-reptício, mal ela avançou alguns metros, talvez estivesse enganada, talvez ali mesmo à sua frente, invisível, um dragão a esperasse de boca aberta. Ou um fantasma de mão estendida, para a levar ao mundo terrível dos mortos que nunca acabam de morrer porque sempre vem alguém ressuscitá-los. Depois, prosaicamente, com uma infinita, resignada tristeza, pensou que o sítio onde estava não era um depósito de comidas, mas uma garagem, pareceu-lhe mesmo sentir o cheiro da gasolina, a este ponto pode iludir-se o espírito quando se rende aos monstros que ele próprio criou. Então, a sua mão tocou em algo, não os dedos viscosos do fantasma, não a língua ardente e a goela do dragão, o que ela sentiu foi o contacto de um metal frio, uma superfície vertical lisa, adivinhou, sem saber que era esse o nome, que se tratava do montante de uma armação de prateleiras.''
    Página 221, Ensaio sobre a Cegueira - José Saramago.

    sexta-feira, setembro 12, 2008

    A junkie romance

    Provocada a inconfidência do mal-do-século ao lamber o teu vômito sinestésico para delirar a minha saliva de tanto Joãos e Marias – ou as Joanas -, despertar-te a manhã seca derramando Southern Comfort nos teus lábios. Te comprar o mundo travestido em uísques & vinhos mediadores do nosso rock em all night long. Te consertar o nítido desenhando formas geométricas no teu ventre satírico. A psicodelia de divergir o fim dos heróis folhetinescos na sonoplastia das nossas palmas soerguendo o welcome teatral à nossa morte imatura. Corroer a tua nuca romântica com versos que explicam a guerra entre os mortais e a via láctea dos que se drogam de vida em demasia. Te banhar em água etílica o teu órgão máximo do prazer, te flutuar a madrugada libertina limpando as unhas de uma fuga em pés descalços, te acender o cigarro maldito e te ascender o trono dos meus corações selvagens, te cultuar a rebeldia consentindo a causa tépida de existir sem custódia familiar, te crivar os ópios de cair em tentação, invadir o diáfano e amar em vão. Te beijar a confusão dos baralhos eficientes no que cisma o tempo em seus pseudônimos. Te dar nomes a cada sobriedade anoitecida, te jurar o eterno sórdido no sótão d’alma, te casar a inconstância de pertencer on the road dentro aos valores utópicos. Isso tudo para te vaguear o culto aos gritos num uníssono a dois e mais toda a religiosidade de se prolongar na prosa de outrem.

    quarta-feira, setembro 10, 2008

    Uma quase terráquea no térreo

    Os passageiros do ônibus penetram as minhas cortinas junto ao sopro dos carros que parece deitar em minha cama, ler as pilhas dos livros que coleciono aglomerados à varanda da rede, saborear os meus retratos de memórias de uma condenada com malícia; que parecem vacilar o ritmo da espera enquanto o semáforo diz não e eu nunca. É cair o dia e os carros dançam a valsa fúnebre em uma fileira sem par. Um após o outro: a agonia-dominó dominando os ouvidos do silêncio fora da lei. Os redemoinhos do apartamento do térreo – com exatidão, a quarta janela da esquina de lá para cá – divertindo a cena trivial dos que partem para chegar, dos que vão para voltar, e mais todos os verbos que rimam as pessoas com destino e mosaico sem desfalques. Pensei em alongar a veneziana e empurrar as duas fatias de vidro de modo a não ter vão algum para olho nenhum, mas, se assim feito, os meus cigarros fumados afinco e com muita fome me matariam antes do previsto e, bem, será que posso com mais seis qüinqüênios dessa vida-tromba-d’água?

    terça-feira, setembro 02, 2008

    Valerie

    As carteiras de cigarro me assolam o lixo sem pecado. Como é que o mundo se ocupa nessas horas demais? Se eu permaneço azul & amarela há exatas três porradas de vida - a minha, a tua e a que era para ser dua -, deve a rua dormir e o sorriso ruir. Devem as páginas do meu dicionário sujo tampar o oco de uma podridão que, juro, eu não faço parte nem face. E para os que insistem no porquê de sumir, eu devolvo o para quê aparecer nessa minha inquietude totalitária. As palavras me atravessam a fala inclusive nas madrugadas sem álcool e então travo obliquamente na primeira vírgula,

    segunda-feira, setembro 01, 2008

    Dois mil duzentos e oitenta e sete

    É preciso que eu me renove. É preciso que eu caia somente e tão somente na insanidade de existir sem clemência demente. Sê forte no equilíbrio, me repito. Sê braços na queda diária. Sê suspiro domesticado na corda vestida de impulsos. Sê dança tímida no impacto dos faróis imortais. Sê o novo experiente de rimas não tão plácidas assim. Sê sem ser senão uma sã clássica, todavia de uma sanidade completa da transfusão decorada, aprendida e consignada. Sê significado consciente. Sê corpo que não se desmente. Sê puramente leve. Sê material conciso da mente. Sê o cravo do asfalto. Sê nome sendo, sê só amor.

    sexta-feira, agosto 29, 2008

    Vai tua vida

    'que o sal dos olhos veio da carne conferida embaixo da unha minha: a última sessão de quinta, o vento alertando os braços da intencionalidade vaga, a pipoca de antes, o sal no gume de cada dedo, os cílios me culpando o descuido da água que a mão não teve: a cha, a chu, o cho. chamada a chuva, o choro! (amada a vulva, o gozo!)

    quarta-feira, agosto 27, 2008

    O labirinto

    ''Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.''
    O labirinto in Atlas - Jorge Luis Borges

    sexta-feira, agosto 22, 2008

    quinta-feira, agosto 21, 2008

    Derrame verbal

    Simulando dois navios naufragados, os tapetes de pele envoltos aos meus olhos derramados. Eu devia estar me sentindo tão calcanhar despido em gelo e escamas que imaginei a tua fraqueza conduzindo os meus impulsos derretidos somente por não caberem. E te vi sentado numa calmaria que nunca tua, assistindo o filme dos papéis que engravidam vozes de mim. Tu me secavas a vida que me estampava o choro na escuridão desejada do cinema. A vida que é o meu sintoma cognitivo maior. Os muitos cavalos galopando o meu pouco espaço. Eu estava prestes a explodir quando te criei tão real ao alcance de minha alucinação amiga. É que eu me proibia de amar em desatino as montanhas invertidas. Dava-me ordens como não me despir nem em banhos diários. Avesso de mim servindo de proteção aos tecidos. O que era mim-eu-dentro-alma-âmago-me-sangue deu de facas à intimidade sabida anônima. E tu tens a mim como sendo invenção nunca existida. Então te inventei para que me inventasse, para que despisse o avesso e depois as minhas vestimentas, para que a minha estrada mais funda pertencesse a tua cabeça libidinal mais instintiva, para que, junto a mim, tu te tornasse também navio naufragado; embora um navio naufragado em gozo possível de montanhas invertidas.

    terça-feira, agosto 19, 2008

    Animus & Anima

    E então, apresentando a ela o dorso vestido de tecido negro e casca ferida, Animus virou tenro a cabeça de modo a encostar o queixo no ombro direito, contornando o perfil cabisbaixo entre azulejos nodosos ao fundo. A pupila sendo a coitada com os dedos do sol lhe esticando a íris. Animus enrugava os sobrolhos, afirmava os olhos tentando a fotografia da última cena que pudesse, vontade dele, figurar qualquer lembrança anterior ao corpo curvado. Animus implorava um adeus não correspondido. A vida maltrapilha pede piedade à dor. Era certo que eram as solas dos seus pés que pisariam a terra em busca de distância daquela ruína, mas a covardia lhe cabia tão bem. Sentia-se confortável em esquina perdida - mergulhado no dia a dia que se repetia a cada resto de lama que já endurecera no pano da roupa.
    Anima ensaiava um desprezo agarrando uma perna a outra, caindo o pescoço em borda oleosa da banheira, acarinhando com as próprias mãos os seios. Por cima do corpo, via Animus estender até ela a aflição pusilânime de querer lembrar somente do esquecimento. A aflição pisulânime. Afundou-se, de súbito, na salmoura. Fechou braços e pernas em posição fetal e a cabeça tentando o abismo do umbigo para que a banheira lhe servisse e a salmoura evitasse a decomposição do consciente. Anima estava percorrendo a visão mórbida de uma porta esmagando a metade da face de Animus, saltando-lhe o olho direito e respingando líquido pardo em azulejos com manchas de caminhos. Com manchas de caminhos, com manchas de caminhos, com manchas de (!)
    O caminho queria o tombo dessas almas outorgadas ao repúdio de si mesmas. É inocente inclusive o pulsar do peito que desconhece a inércia. O caminho. O tombo queria a fúria dos dentes libertos das gengivas sem saúde para mastigar. Os não-amados também têm fome. O caminho. O tombo. A fúria queria a tristeza corrompida aliada ao prazer. É possível uma corja infiltrada num âmago. O caminho. O tombo. A fúria. A tristeza queria Cleópatras e cobras. Algumas realidades preferem as pálpebras alongadas. Cleópatras e cobras queriam o perdão nascendo no útero. De nada adianta costurar línguas ou dicionários, todas as coisas existem. Cleópatras, cobras, a tristeza, a fúria, o tombo,
    O caminho com manchas. Animus guerreava com o seu corpo que há tanto estava entregue a uma câimbra generalizada. Era como uma tentativa de fuga para o sem-nome que latejava dentro do que fora nem sujeira nem rachadura ou casca e ferida de assemelhava. Alma? Não. O Sem-nome. Seus olhos esbugalhados eram graça para o sol que inflamava, que fazia rebuliço com dedos de fogo. A aflição pusilânime. Nervos ganhando delineações externas que outrora aconteciam soterrados dentro da casca grossa do pescoço. Animus gritava a loucura! Animus era a costela do sem-nome! Animus aguçava o sangue para este atiçar os músculos tão rendidos à vida. Um tirano que segurava um espeto de ferro com brasa no gume. Um tirano que tatuava no próprio sangue uma fenda rubra. A melodia das faíscas e Animus sendo outra mancha no chão. A mancha embalsamada de choro odiando o sal da água que escondia Anima.
    A salmoura aos poucos embaçava de Anima a visão. Animus estranhava a religião de ter aonde chegar. Anima, mesmo sem olhos que prestassem, continuava a enxergar a metade sendo inteira destruída. O tirano de boa fé lutava pelo fim do caminho. Anima reconhecia na amargura do sal o seu desprezo que significava a maior nudez, a sua nudez doce.
    Animus puxou pelos cabelos ralos Anima das águas, devolvendo a ela o sol rebelde. Anima consentiu o afago e protegeu os seus seios no tecido negro - que doce igual - de Animus.
    E então souberam: fizemos amor.

    sexta-feira, agosto 15, 2008

    Uma temporada no inferno

    ''Escuto-o a fazer da infâmia uma glória, da crueldade um atrativo. 'Pertenço à raça distante: meus pais eram escandinavos: faziam incisões nas costas, bebiam o sangue. - Farei entalhes por todo o corpo, me tatuarei, quero me tornar assustador como um mongol: vais ver, berrarei pelas ruas. Quero me tornar louco de raiva. Nunca me mostre jóias, vou me arrastar e retorcer no tapete. Minha riqueza, gostaria de manchá-la de sangue por toda parte. Nunca trabalharei...' Muitas noites, seu demônio me tomando, rolamos juntos, lutava com ele! Seguido ele me aguarda à noite, bêbado, numa rua ou sob um teto, para me amedrontar mortalmente. - 'Vão me cortar o pescoço mesmo, que nojo'. Oh, os dias em que quer andar com a aura do crime!
    Às vezes fala, numa espécie de gíria enternecida, da morte que faz se arrepender, dos infelizes que sem dúvida existem, dos trabalhos penosos, das separações que dilaceram os corações. Nas espeluncas onde nos embriagamos, chorava observando os que estavam em volta, gado de miséria. Levantava os bêbados nas ruas escuras. Tinha a piedade de uma mãe malvada pelos filhinhos. - Ia embora com gentilezas de menina aprendendo o catecismo. - Fingia estar a par de tudo, comércio, arte, medicina. - Eu o seguia, era preciso.
    Eu via todo o ambiente no qual, em espírito, se envolvia: roupas, lençóis, móveis: eu lhe dava força, uma outra figura. Via de tudo o que tocava, como se tivesse querido criar cada coisa por ele mesmo. Quando me parecia com o espírito inerte, eu o seguia em ações estranhas e complicadas, longe, boas ou más: estava segura de nunca entrar em seu mundo. Ao lado de seu querido corpo adormecido, quantas horas noturnas de vigília, me perguntando por que ele queria tanto se evadir da realidade.
    (...) Como isso te soará engraçado quando eu não estiver aqui, isso por que passaste. Quando não tiveres mais meus braços em volta do pescoço, nem meu peito para nele descansares, nem minha boca fechando-te os olhos. Porque é preciso que eu vá embora, para longe, um dia.''
    Página 53, Delírios in Uma temporada no inferno, Arthur Rimbaud.

    And if it's Happiness?

    So closer, too far away

    E na poltrona ao meu lado, numa sessão cinéfila italiana, um velho ronca e se esquece.

    quarta-feira, agosto 13, 2008

    De '89 a '08

    Há como se camuflar ensimesmado numa explosão de eus dançantes e drogados de espírito selvagem?

    terça-feira, agosto 12, 2008

    Sexta-feira da Paixão

    ''(...)
    Chego meio prosa, sombras no rosto.
    Não tenho muitas palavras como pensei.
    "Coisa ínfima, quero ficar perto de ti".
    Te levo para a avenida Atlântica beber de tarde
    e digo: está lindo, mas não sei ser engraçada.
    "A crueldade é seu diadema..."
    O meu embaraço te deseja, quem não vê?
    Consolatriz cheia de vontades.
    Caixa de areia com estrelas de papel.
    Balanço, muito devagar.
    Olhos desencontrados: e se eu te disser, te adoro,
    e te raptar não sei como dessa aflição de março,
    bem que aproveitando maus bocados para sair do
    esconderijo num relance?
    Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?
    Beware: esta compaixão é
    é paixão.''
    Página 70, A teus pés - Ana Cristina Cesar

    segunda-feira, agosto 11, 2008

    Philo & Sophia

    Eu escuto mais no oco ocre. Oco moldado, como se por argila, em paredes tão robustas e pesadas que é irrealizável a locomoção da estrutura que se forma: monumento de dimensão imersível embutido em alguma realidade pequena. O oco é imersível pois é o tudo não-preenchido; é o silêncio povoado que habita. No oco ocre, um estalo singelo de osso, por exemplo, se parece com um alerta. Um alerta para lembrar que o eco do osso esticando no oco ocre é cacofania ao avesso: a repetição do estalo passa a ser o monumento embutido. As paredes dessa estrutura são como águas congeladas em inverno eterno, e meu corpo é fundado no oco ocre tal qual parte inerente da matéria-coisa vazia. Uma palavra pronunciada ou grito estendido ou tosse resvalada ou estouro dado do lado de fora da estrutura moldada é o que aquece a superfície intacta e, na travessia de ambiente, faz-se barulho derretido em gotas.
    Ou seja, no meu silêncio despovoado, eu sou o estado gasoso saturando o antes da camada sólida, que se deixa beber o líquido para que haja a companhia. A esse emaranhado físico dou o nome de desconcentração voluntária. Quando se é parte do silêncio, não existe atenção no que rege o pensamento de reconhecer o que se era, pois, o formato e a textura do corpo foram esquecidos e pouco importam as mãos se o tato já está fragmentado em oco ocre. O pensamento é uma palavra ou grito ou tosse ou estouro engolido. A sensação é de um formigamento eufórico porque é como transcender o poder de ser e ainda estar acompanhado de um raciocínio, mesmo este provocado por uma concentração fugida à gênese própria.
    À surdina do real, a sensação menos importante é a perplexidade humana. À medida que se enlouquece a sensação hebraica, tão antiga, de mergulhar no silêncio e descobrir-se ainda respirando, as espadas ajuizadas fincam o pensamento numa vertigem subjetiva como se elas fossem pregos em madeira seca. Um acumulado de idéias surge à mente e o mundo parece imortal: não existe a pressa de definição de alma e de entendimento ontológico. Eu escuto a vida sem a necessidade de estar viva, eis a força do oco ocre.
    O surreal só terá desfecho quando houver um estrondo. Um estrondo que quebrará o gelo das paredes e que me levará ao engasgo. Aos soluços serei obrigada a buscar o insólito da realidade existida. Isso exigirá uma atenção para distinguir se, depois do tempo corrido, eu ainda vivo ou se já morri.
    O novo silêncio - o silêncio despovoado que não habita, mas que deixa um vazio descarnado - será de descoberta. Cairei na desconcentração involuntária: a palavra falando, o grito se desesperando, a tosse asfixiando, a bomba explodindo e meu pensamento, ao invés de ser fisgado por esses acontecimentos, fisgará a idéia em mim e tudo será eu: eu falando, eu me desesperando, eu me asfixiando, eu explodindo:
    Há a carência de sentido humano. Será preciso caber a alma em mim para que eu me sirva em alguma realidade, ora a que me faça continuar inflando a insanidade e suspirando o inverso, ora a que me engolfará a pulsação cardíaca e me tornará a fantasma de meus anseios, provocando o meu desespero vivo de querer a morte na vida oculta. A atenção absoluta em mim será a concentração involuntária e a deslealdade dos meus monólogos entorpecerá a minha mente, que já esquizofrênica.
    Na mania de não suportar a ingratidão do tempo, sonharei a concentração voluntária com a esperança de dormir soterrada em alguma nostalgia vital, que será tão real quanto viver estando viva.

    sexta-feira, agosto 08, 2008

    O calendário dos velórios

    Quedou os próprios pés
    No ácido líquido de lágrimas
    Saídas de seios em galé
    De mulheres grisalhas
    ____________________________________________
    Ritmo kitsh de uma velhice
    Nascida de um acúmulo oco
    Ganhado no troco do que, tu viste
    Belzebu deu pouco, um amanhã e teu olho

    ____________________________________________

    Para injuriar colméias assassinas
    Da esperança transfigurada na esquina
    Da ordem mesquinha: vida e morte, morta-viva
    Dos anônimos que lhe amputaram a sisudez das pernas

    ____________________________________________

    Enchiam a bacia que tu guardaste os dedos polimorfos
    O leite materno de berço
    Das grisalhas rezando o teu começo
    Num velório em vinho; o teu antigo remorso

    ____________________________________________

    De transtornos bêbados na incoerência
    A dama violenta te encanta na dança
    Que louva teu rancor pávido
    Rebolo o osso, te arrepia o dorso pecaminoso

    ___________________________________________

    Te pendura as patas, Felino
    No cenho de um escaravelho
    Te cospe o excremento no teu caminhar coxo
    Te ri o eu ao espernear o teu hino, Felino, de adeus

    ____________________________________________

    (Na missa sem Deus
    Na armadilha do fim teu
    Tumba tua, de Julieta e de Romeu)

    quinta-feira, agosto 07, 2008

    Quero ser Deus, Quero ser Hannah

    A existência humana ainda era acometida à Hannah sem nenhuma reflexão racional, quase como um sobressalto se não fosse o triunfo de se ver plantada esguia na mesa alta de cimento. Era certo que os pés ficavam na meia-ponta para que as mãos tivessem o que agarrar, mas já entendia que o seu pouco tamanho era desregrado e que isso lhe fora imposto para que pudesse avançar por dois espaços: a coragem de Hannah a duplicava. Se alguma filosofia lhe fosse impossível enquanto infante ou dócil, não teria sentido de antemão que esse fardo lhe acompanharia até o fim. Supressão aniquilada aos cinco anos de idade: as gotas da chuva são os raios solares, concluiu.
    Os olhos estavam apontados para a altura da mesa – para o mundo que zombava de seus confins -, as mãos suavam as certezas vis de talvez, quando enraizada em altura inalcançável, ter acesso à planilha mundana, os lábios umedecidos pela língua não diziam os segredos que lhe prendiam à vontade de caminhar sob o dogmatismo comunal do cimento alto e não desmontavam o silêncio que dentro das letras amontoadas repetia quero ser Deus. Quero ser Deus quando fragmentado significava Quero ser Hannah e só não era escandalizado em detalhes pois para ser universal Hannah compreendia que as suas particularidades precisariam estruturar a religião daqueles que se bastavam ajoelhados ao pé da cama.
    O pouco tamanho de Hannah estava sendo equilibrado pelas unhas dos pés que aos poucos fincavam a cutícula e, depois, ao passo que as articulações dos dedos das mãos mantinham-se esticadas por estarem possuindo a base da mesa, as unhas perfuravam a carne que é a conservação do movimento ou não dos membros inferiores – a planta dos pés. Enquanto as mãos cobiçavam o tato maduro de enfim poder segurar o cimento da mesa, Hannah dilatou a sua presença com a coragem lhe carregando o peso pelos tornozelos. Ela bradava empurre, empurre com certezas lhe pingando a face. Com certezas fajutas: esquecera que havia avançado duas intimidades de si mesma ao ser liberta em leveza. Por prever que Hannah se enraizaria ao cimento da mesa sem coragem de ser Deus, a coragem de Hannah a traiu puxando-lhe as pernas.
    As mãos escorregavam da base da mesa como o corpo que foi perdendo o equilíbrio até espalhar-se no chão. De vereda, o queixo de Hannah foi aberto em corte profundo pelo impacto da queda. Os seus cinco anos de vida foram lembrados quando, notando que estava sendo acomodada em colo materno e seguro de qualquer liberdade, pensou que o sangue é a continuação da dor como as gotas de chuva são os raios solares. A mão que lhe acarinhava o rosto infantil e que estava ensangüentada de seu sangue era a de sua mãe. E a expressão facial da mãe de Hannah foi contorcida por sentir tanta estranheza ao ver as entranhas retorcidas que envolviam a mandíbula. Foi como se a razão do ser humano fosse descoberta fora de laboratório científico.
    Hannah agarrava com os olhos, entre as mãos enluvadas que lhe costuravam o queixo, o amor de sua mãe. Se não doesse o silêncio que ainda repetia quero ser Deus e se não doesse a ferida que lhe impedia a voz, ela teria dito eu te amo, mãe cerrando os olhos. Hannah – que nunca fora dócil – entendeu que a sua coragem infantil fora costurada junto ao corte do queixo e que seria necessário ter uma força nua de puerilidade para clamar o amor suave, o amor materno.
    O esforço maior fora o de revelar o Deus de Hannah – o de ser o cosmo do nome despido de repetições: de ser a Ana da analgesia que a renasceu sem inocência, de ser a Ana sufixal que a caracterizou humana. Eu sou amor suave, gritou.

    quarta-feira, agosto 06, 2008

    Cem anos de solidão

    '' -- Que ninguém tenha ilusões - gritou, para que a ouvisse Fernanda. - Amaranta Buendía se vai deste mundo como veio.
    Não voltou a se levantar. Recostada em almofadões, como se na verdade estivesse doente, teceu as suas longas tranças e enrolou-as sobre as orelhas, exatamente como a morte lhe dissera que deveria estar no ataúde. Em seguida perdiu a Úrsula um espelho e pela primeira vez em mais de quarenta anos viu o seu rosto devastado pela idade e pelo martírio e se surpreendeu do quanto se parecia à imagem mental que tinha de si mesma. Úrsula compreendeu pelo silêncio da alcova que tinha começado a escurecer.
    (...) A sua lucidez, a habilidade para se bastar a si mesma, faziam pensar que estava naturalmente vencida pelo peso dos cem anos mas, embora fosse evidente que andava mal da vista, ninguém suspeitou que estivesse completamente cega. Dispunha então de tanto tempo e de tanto silêncio interior para vigiar a vida da casa que foi ela a primeira a perceber a calada angústia (...).''
    Página 250 e 251, Cem anos de solidão - Gabriel García Márquez.

    terça-feira, agosto 05, 2008

    Uma lira desvirgem (deflorar: de flor em ar)

    por favor,

    enfia folhas plácidas

    amarradas por cadarços,

    ou que via de regra sejam

    escritas com sangue e pena

    e tenha pena, por favor

    ou não há acordo com a minha paz

    nem com o terno do termo abreviado

    que senta e muito faz na procura pelas pernas

    para serem cruzadas

    (é medo dos olhos que comem os olhos)

    (ou das mãos que tateiam os teus dedos e vagina)

    o sino na crista da amargura alucinada - que sina

    disfarçar é a minha dignidade – que nada

    ________________________________________

    minha,

    saio berrando o que não tenho na goela

    tua,

    cela cancela o ela e fica mim, eu, sentido

    o susto afunda umbigos

    morra comigo?

    se respeitares este pedido,

    a tua rima será deflorada

    a raiz extirpada

    e os teus papéis rabiscados

    boicotados, atirados lado a lado

    obrigados a queima do meu trago

    saído

    fundido

    indo

    ________________________________________

    buscar a tua pureza no quadro branco

    que é silêncio

    (este que forjo com a corja das sílabas-marias

    que de virgem só carregam o oco da solitude

    numa euforia ranzinza)