terça-feira, outubro 07, 2008

Carta ao Absurdo

O foco estrábico está nos monstros cujos trejeitos tomamos partido: nos monstros que nos tornamos. Monstros estes solitários por segredar a eternidade no fim de si, os anômalos dignos do terror pior que é o de destelhar as casas todas de qualquer cidade construída nos becos e ruas dos nossos sangues.
É sabido que tu em mim e também o contrário teve liberdade pequena desde o último inverno, em Agosto. Quando trancada a porta da frente, o corredor e suas possibilidades seqüestravam o tempo em que noutra estação fomos um eu. Estruturamos uma mentira desumana onde o desejo só existia na limitação opaca deste apartamento de paredes compridas demais.
Fora da tinta branca e da infiltração no teto da sala de estar a regra era te pintar de cinza. Fugia os meus olhos para não querer teu cheiro e gozo ou apertava-os fortemente para não ouvir as poesias tuas para a outra, as outras – tanto faz.
E tanto fez; e tanto nos fizemos somente nos meus lençóis e na falta de tecido da tua cama que encontrei o labirinto excessivo da minha não-identidade em ti, homem do Absurdo.
Retrocedi às sensações primitivas que nunca se definem antecedentes a e sim a partir de; como se esse amor fosse fisiológico na distância do meu início.
Colecionamos sustos, medos, cicatrizes, feridas, as palavras minhas e os teus silêncios que me ensurdecem feito gritos de morte, de morte matada.
É o fantasma da morte nos unindo como o vento e suas impurezas. Tu estancado no teu limite que é a sempre devastação triunfal de um inventário visionário meu. Tua cortina me esconde, ó indomável. Deixa-me ser a noite nua desse teu quarto selvagem de chão e papéis amassados, de chão e cadáveres vivos de amor.
Porque, em verdade, tão pouco sentido faz essa atmosfera outonal e os teus móveis novos, madeira angelim-pedra com puxador prata. Tampouco a tua porta trancada com violência e a maçaneta caída para eu perceber que algo te dói - agonizada face de textura fina, olhos a salvo pelas sobrancelhas ordenadas e convexas. Ainda pouca realidade tem nas tuas camisetas dobradas como se por mim e organizadas nas gavetas de madeira angelim-pedra com puxadores pratas. Tanto menos real a luz elétrica contornando os vãos da tua porta em pleno dia quente com os humanos de mangas longas e guarda-chuvas.
A chuva ácida acontece neste apartamento, pobres humanos do lado de fora. Gotas borrando o papel e apagando os cigarros. Gotas derretendo os pilares cardíacos e inclusive os sistemas orgânicos todos, infiltrando o teto da sala de estar sempre mais e aumentando o número de garrafas alcoólicas para servir às goteiras. Para as goteiras, evidente que sim.
O resto da tua carne moída na panela há semanas sustenta os fungos perfumados, que fazem analogia a um funeral em cozinha. Já essas proteínas ausentes da minha função vital criam seres esvaziados e anêmicos no meu ralo – junto às cinzas de nicotina fumada -: criaturas tão incapazes de seguir viagem à razão. O que houve com a minha melodia? Sou disco riscado em vitrola sem agulha.
Quiçá o descontrole das notas é a tentativa de um nós em nó. Teu assovio à meia-noite quer me seduzir da tua felicidade esquecida no teu cruzar de pernas em ruelas e somente lembrada ao entrar pelo corredor; tua cantoria em conjunto àquela voz feminina e teu grito ao relento de um Universo em Desencanto me recuam o bom senso. Confundo a intensidade e te amo em desespero sem compreender o que é o quê, o eu sou quem, o quem sou eu, o qual é como, de quais os porquês, o para nunca mais?
Despeço-me permanecendo na ambivalência dos velhos lençóis ou quase ou nada, fitando os meus pés a flutuar em sensações de tijolos e cimento, neste quarto de paredes compridas demais, neste apartamento de mesmo endereço que o teu: coerência frívola do envelope não encaminhar-se à caixa do correio. O absurdo já jaz tal jazz nefasto aqui, perdido em intenções de projeção a uma natureza que não a nossa, homem do Absurdo: ao silêncio do meu além e do teu aquém.