terça-feira, outubro 21, 2008

Trópico de Câncer

''Ela, Mona, costumava dizer-me, em seus acessos de exaltação, ''você é um grande ser humano''. E embora me tenha deixado aqui para perecer, embora tenha posto embaixo de meus pés um grande poço uivante de vazio, as palavras que jazem no fundo da minha alma saltam para a frente e iluminam as sombras, por baixo de mim. Sou alguém que se perdeu na multidão, alguém a quem as luzes esfuziantes deixaram estonteado, um zero que viu tudo ao seu redor reduzido a escárnio. Passam por mim homens e mulheres com enxofre, porteiros em libré de cálcio abrindo as fauces do inferno, fama caminhando sobre muletas, amesquinhada pelos arranha-céus, mastigada e esfrangalhada pela boca pontiaguda das máquinas. Eu caminhava entre os altos edifícios em direção ao frescor do rio e via as luzes subirem entre as costelas dos esqueletos como foguetes. Se eu fosse verdadeiramente um grande ser humano, como dizia ela, então qual seria a significação dessa escravizante idiota que me cerca? Eu era um homem com corpo e alma, eu tinha um coração que não estava protegido por cúpula de aço. Eu tinha momentos de êxtase e cantava com centelhas ardentes. Eu cantava o equador, as pernas dela vestidas de vermelho e as ilhas perdendo-se de vista. Mas ninguém ouvia. Um tiro disparado através do Pacífico perde-se no espaço porque a Terra é redonda e os pombos voam de cabeça para baixo. Vi-a olhando através da mesa com os olhos cheios de pesar; a tristeza, aprofundando-se, achatava-lhe o nariz contra a espinha; a medula batida pela piedade tornara-se líquida. Ela era leve como um cadáver que flutua no mar Morto. Seus dedos sangravam com angústia e o sangue transformava-se em baba. Com a madrugada úmida veio o dobrar dos sinos e ao longo das fibras dos meus nervos os sinos tocaram incessantemente e seus badalos bateram em meu coração e retiniram com maldade de ferro. Estranho que os sinos dobrassem assim, mas ainda mais estranho é o corpo estourando, esta mulher voltada para a noite e suas palavras verminosas roendo através do colchão. Movimentei-me por baixo do equador, ouvi a hedionda risada da hiena de fauces verdes, vi o chacal de rabo sedoso e o leopardo malhado, tudo deixado no jardim do Éden. E depois sua tristeza alargou-se como a proa de um couraçado, e o peso de seu afundamento inundou minhas orelhas. Lodo e safiras escorrendo, derramando-me entre os alegres neurônios, e o espectro entrançando e as amuradas afundando. Macios como patas de leão eu ouço os carros dos canhões virarem, vejo-os vomitarem e babarem: o firmamento verga e todas as estrelas ficam pretas. Oceano negro sangrando e as estrelas chocas criando nacos de carne recém-inchada enquando no alto os pássaros esvoaçam e do céu alucinado cai a balança com o almofariz e a mão, e os vendados da justiça. Tudo o que está aqui relacionado move-se com pés imaginários ao longo dos paralelos de orbes mortos; tudo o que é visto com as órbitas vazias rebenta como capim florescente. Do nada esgue-se o sinal de infinito; debaixo das espirais sempre ascendentes afunda-se vagarosamente o buraco escancarado. A terra e a água fazem números em conjunto, um poema escrito com carne e mais forte que o aço ou granito. Através da noite interminável a Terra rodopia em direção a uma criação desconhecida...
Hoje acordei de um sono pesado com pragas alegres em meus lábios, com palavras desconexas em minha língua, repetindo para mim mesmo uma litania - ''Fay ce que vouldras!... fay ce que vouldras!''. Faça qualquer coisa, mas que cause êxtase. Tantas multidões dentro de minha cabeça quando digo isso para mim mesmo: imagens, alegres, terríveis, enlouquecedoras, o lobo e o bode, a aranha, o caranguejo, a sífilis com suas asas estendidas e a porta do útero sempre destrancada, sempre aberta, sempre preparada como o túmulo. Luxúria, crime, santidade: as vidas dos meus adorados, os fracassos dos meus adorados, as palavras que deixaram atrás de si, as palavras que deixaram inacabadas; o bem que arrastaram atrás de si e o mal, a tristeza, a discórdia, o rancor, a luta que criaram. Mas, acima de tudo, o êxtase!''
Página 237, 238 e 239, Trópico de Câncer - Henry Valentine Miller