quinta-feira, agosto 07, 2008

Quero ser Deus, Quero ser Hannah

A existência humana ainda era acometida à Hannah sem nenhuma reflexão racional, quase como um sobressalto se não fosse o triunfo de se ver plantada esguia na mesa alta de cimento. Era certo que os pés ficavam na meia-ponta para que as mãos tivessem o que agarrar, mas já entendia que o seu pouco tamanho era desregrado e que isso lhe fora imposto para que pudesse avançar por dois espaços: a coragem de Hannah a duplicava. Se alguma filosofia lhe fosse impossível enquanto infante ou dócil, não teria sentido de antemão que esse fardo lhe acompanharia até o fim. Supressão aniquilada aos cinco anos de idade: as gotas da chuva são os raios solares, concluiu.
Os olhos estavam apontados para a altura da mesa – para o mundo que zombava de seus confins -, as mãos suavam as certezas vis de talvez, quando enraizada em altura inalcançável, ter acesso à planilha mundana, os lábios umedecidos pela língua não diziam os segredos que lhe prendiam à vontade de caminhar sob o dogmatismo comunal do cimento alto e não desmontavam o silêncio que dentro das letras amontoadas repetia quero ser Deus. Quero ser Deus quando fragmentado significava Quero ser Hannah e só não era escandalizado em detalhes pois para ser universal Hannah compreendia que as suas particularidades precisariam estruturar a religião daqueles que se bastavam ajoelhados ao pé da cama.
O pouco tamanho de Hannah estava sendo equilibrado pelas unhas dos pés que aos poucos fincavam a cutícula e, depois, ao passo que as articulações dos dedos das mãos mantinham-se esticadas por estarem possuindo a base da mesa, as unhas perfuravam a carne que é a conservação do movimento ou não dos membros inferiores – a planta dos pés. Enquanto as mãos cobiçavam o tato maduro de enfim poder segurar o cimento da mesa, Hannah dilatou a sua presença com a coragem lhe carregando o peso pelos tornozelos. Ela bradava empurre, empurre com certezas lhe pingando a face. Com certezas fajutas: esquecera que havia avançado duas intimidades de si mesma ao ser liberta em leveza. Por prever que Hannah se enraizaria ao cimento da mesa sem coragem de ser Deus, a coragem de Hannah a traiu puxando-lhe as pernas.
As mãos escorregavam da base da mesa como o corpo que foi perdendo o equilíbrio até espalhar-se no chão. De vereda, o queixo de Hannah foi aberto em corte profundo pelo impacto da queda. Os seus cinco anos de vida foram lembrados quando, notando que estava sendo acomodada em colo materno e seguro de qualquer liberdade, pensou que o sangue é a continuação da dor como as gotas de chuva são os raios solares. A mão que lhe acarinhava o rosto infantil e que estava ensangüentada de seu sangue era a de sua mãe. E a expressão facial da mãe de Hannah foi contorcida por sentir tanta estranheza ao ver as entranhas retorcidas que envolviam a mandíbula. Foi como se a razão do ser humano fosse descoberta fora de laboratório científico.
Hannah agarrava com os olhos, entre as mãos enluvadas que lhe costuravam o queixo, o amor de sua mãe. Se não doesse o silêncio que ainda repetia quero ser Deus e se não doesse a ferida que lhe impedia a voz, ela teria dito eu te amo, mãe cerrando os olhos. Hannah – que nunca fora dócil – entendeu que a sua coragem infantil fora costurada junto ao corte do queixo e que seria necessário ter uma força nua de puerilidade para clamar o amor suave, o amor materno.
O esforço maior fora o de revelar o Deus de Hannah – o de ser o cosmo do nome despido de repetições: de ser a Ana da analgesia que a renasceu sem inocência, de ser a Ana sufixal que a caracterizou humana. Eu sou amor suave, gritou.