quarta-feira, setembro 17, 2008

Ensaio sobre a cegueira

''O medo voltou, sub-reptício, mal ela avançou alguns metros, talvez estivesse enganada, talvez ali mesmo à sua frente, invisível, um dragão a esperasse de boca aberta. Ou um fantasma de mão estendida, para a levar ao mundo terrível dos mortos que nunca acabam de morrer porque sempre vem alguém ressuscitá-los. Depois, prosaicamente, com uma infinita, resignada tristeza, pensou que o sítio onde estava não era um depósito de comidas, mas uma garagem, pareceu-lhe mesmo sentir o cheiro da gasolina, a este ponto pode iludir-se o espírito quando se rende aos monstros que ele próprio criou. Então, a sua mão tocou em algo, não os dedos viscosos do fantasma, não a língua ardente e a goela do dragão, o que ela sentiu foi o contacto de um metal frio, uma superfície vertical lisa, adivinhou, sem saber que era esse o nome, que se tratava do montante de uma armação de prateleiras.''
Página 221, Ensaio sobre a Cegueira - José Saramago.